Vou contar agora como arruinei os planos que meu pai e minha mãe haviam traçado para me transformar em um cego, primeiro acho que vou explicar pra vocês entenderem bem o que é um cego, muito bem um cego não enxerga, isso é lógico e meu pai e minha mãe planejaram exatamente isso, ser aquele cara que pensa que está tudo bem enquanto o mundo desaba, que chega perto das meninas bem alimentado e penteado com uma remela gigante no canto dos olhos, ou seja, o sujeito que não percebe as coisas, mesmo quando elas estão perto demais, coladas na pupila, iso é uma covardia é o que eu chamo de ser realmente cego por que o cego de verdade, tipo Ray Charles, tem uma baita intuição e sabe se virar sozinho, se bobear o cara até adivinha pensamento coisa que meu pai e a minha mãe são incapazes de fazer isso aí que os cegos de verdade fazem e por isso querem me tornar esse tipo de pessoa, um cego de mentira, que não percebe as coisas, que se iludiria com qualquer chantagem mesquinha tipo festa de formatura, carro, viagem pra Disney, esse tipo de coisa deslumbrante que meu pai e minha mãe sempre usaram para me "educar", esses “prêmios” como se faz com as focas, as focas amestradas do PlayCenter, sim filho, meu filho, se passar de ano vai ganhar uma sardinha, demorei um tempão pra perceber essa coisa toda, fico louco só de pensar nisso, adestramento também faz parte do projeto deles, isso os dois combinavam muito bem, meu pai e minha mãe, duas pessoas completamente diferentes, não sei como eles namoraram e conseguiram se conhecer e casaram durante 4 dias, ela conta isso, que ele saiu de casa logo depois que o espermatózoide fecundou o óvulo, tarde demais pra fugir, desesperado, como se tivesse saído de um elevador lotado, na verdade eu não posso levar a sério essa versão dela por que ele não fugiu pra valer, sempre esteve por perto, a família dele é bem tradicional e tal e fez com que ele ficasse sempre por perto, eles jogam muitas sardinhas pra ele e ele joga as sardinha pra mim em troca de alguma acrobacia, não de jeito nenhum, não levo a mal, acho que os dois se precipitaram, o problema foi eu ter nascido, não levo a mal mesmo, nem sei como meu pai encarou minha mãe, sério, uma vez eu disse isso pra ela e ela jogou um cinzeiro com cigarro e tudo na minha testa, é difícil conviver com alguém que fuma um cigarro atrás do outro, mesmo sendo sensível e pedindo desculpas chorando, com dois cigarros acesos, um em cada mão, ela é um tipo bem emotivo, chora fácil, já veio me visitar aqui duas ou três vezes mas eu não consegui entender nada que ela dizia por causa dos soluços, na primeira vez, já que nenhuma mãe chora tanto quanto a minha, falei pra rapaziada que era por causa do meu cachorro que morreu, por isso ela tava naquele estado, gostava muito dele e tal, devia ter inventado um motivo mais sério por que depois de três semanas ela continua chorando e ninguém acredita que alguém é capaz de sofrer tanto por um cachorro, nunca tive um cachorrinho mas com certeza ficaria bem chateado, a morte é uma coisa bem chata e inevitável, quando ela tava grávida eles já haviam combinado um troço assim, tipo aquele filme horrível A Vida é Bela, aquele do cara que fica enganando o filho o tempo inteiro dentro do campo de concentração nazista e o cara mente tão bem que o molequinho nem desconfia que está correndo perigo de vida por sorte meu pai não mente tão bem e minha mãe nem se fala, a voz dela desafina quando ela mente, tá falando normal assim, e, quando a mentira começa a ser contada as palavras vão saindo em uns blocos diferentes, um maior que o outro, uma coisa muito bizarra, vai ser engraçado quando ela cair na real e parar de chorar nas visitas e resolver conversar direito comigo por que eu duvido que ela consiga ter uma conversa sincera, vai ser uma mentira atrás da outra, como sempre meu pai ainda não veio me ver e eu acho ótimo, vou me preparar por que mais cedo ou mais tarde ele vai querer matar a curiosidade de ver minha cara e tudo mais, é o tipo curioso, o tipo que, quando tem um acidente de transito, daqueles envolvendo motoqueiro e ônibus, pára e fica olhando, perguntando como foi e o que aconteceu, fazendo aquela cara de quem chupou limão dizendo, viixe, não é por mal que ele adora uma desgraça alheia, na certa essas coisas fazem ele pensar que de algum modo ele tem muita sorte, precisava ver a cara de satisfação que ele fazia quando chegava naquela parte em que o lobo-mau sopra a casa de palha do porquinhos preguiçoso, ele é do tipo que adora tragédia mesmo que não admita uma vez ele veio todo solene, por dentro ele vibrava, seu primo morreu, ele disse, antes ele do que eu, respondi, ele ficou uma fera, me deu tapão na orelha, raramente ele me batia, sabe, por não ter muita intimidade comigo, já minha mãe, mesmo com toda a sensibilidade dela, sempre me dava uns tapas, eu e minha mãe somos muito mais íntimos, a gente dividia a mesma escova de dente, bebia no mesmo copo, usava a mesma toalha... é meio chato admitir, mas, se ela tivesse mais intimidade com outras pessoas, finalmente eu seria feliz por que não apanharia tanto, se ela arrumasse um namorado, mas, quem vai querer uma mulher como minha mãe, desafinada e carente demais,essa é a verdade mas eu ainda não contei como foi que eu arruinei os planos daqueles dois, isso foi engraçado, foram vários passos, não é fácil desarmar um plano de uma vida inteira, mas, agora que consegui, terei tempo e disposição pra contar, aqui o tempo passa muito devagar e eu não tenho escolha a não ser falar e falar como arruinei o plano que meu pai e minha mãe tinham para me tornar um cego.