quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Como arruinei os planos que meu pai e minha mãe tinham para me transformar em um cego



Vou contar agora como arruinei os planos que meu pai e minha mãe haviam traçado para me transformar em um cego, primeiro acho que vou explicar pra vocês entenderem bem o que é um cego, muito bem um cego não enxerga, isso é lógico e meu pai e minha mãe planejaram exatamente isso, ser aquele cara que pensa que está tudo bem enquanto o mundo desaba, que chega perto das meninas bem alimentado e penteado com uma remela gigante no canto dos olhos, ou seja, o sujeito que não percebe as coisas, mesmo quando elas estão perto demais, coladas na pupila, iso é uma covardia é o que eu chamo de ser realmente cego por que o cego de verdade, tipo Ray Charles, tem uma baita intuição e sabe se virar sozinho, se bobear o cara até adivinha pensamento coisa que meu pai e a minha mãe são incapazes de fazer isso aí que os cegos de verdade fazem e por isso querem me tornar esse tipo de pessoa, um cego de mentira, que não percebe as coisas, que se iludiria com qualquer chantagem mesquinha tipo festa de formatura, carro, viagem pra Disney, esse tipo de coisa deslumbrante que meu pai e minha mãe sempre usaram para me "educar", esses “prêmios” como se faz com as focas, as focas amestradas do PlayCenter, sim filho, meu filho, se passar de ano vai ganhar uma sardinha, demorei um tempão pra perceber essa coisa toda, fico louco só de pensar nisso, adestramento também faz parte do projeto deles, isso os dois combinavam muito bem, meu pai e minha mãe, duas pessoas completamente diferentes, não sei como eles namoraram e conseguiram se conhecer e casaram durante 4 dias, ela conta isso, que ele saiu de casa logo depois que o espermatózoide fecundou o óvulo, tarde demais pra fugir, desesperado, como se tivesse saído de um elevador lotado, na verdade eu não posso levar a sério essa versão dela por que ele não fugiu pra valer, sempre esteve por perto, a família dele é bem tradicional e tal e fez com que ele ficasse sempre por perto, eles jogam muitas sardinhas pra ele e ele joga as sardinha pra mim em troca de alguma acrobacia, não de jeito nenhum, não levo a mal, acho que os dois se precipitaram, o problema foi eu ter nascido, não levo a mal mesmo, nem sei como meu pai encarou minha mãe, sério, uma vez eu disse isso pra ela e ela jogou um cinzeiro com cigarro e tudo na minha testa, é difícil conviver com alguém que fuma um cigarro atrás do outro, mesmo sendo sensível e pedindo desculpas chorando, com dois cigarros acesos, um em cada mão, ela é um tipo bem emotivo, chora fácil, já veio me visitar aqui duas ou três vezes mas eu não consegui entender nada que ela dizia por causa dos soluços, na primeira vez, já que nenhuma mãe chora tanto quanto a minha, falei pra rapaziada que era por causa do meu cachorro que morreu, por isso ela tava naquele estado, gostava muito dele e tal, devia ter inventado um motivo mais sério por que depois de três semanas ela continua chorando e ninguém acredita que alguém é capaz de sofrer tanto por um cachorro, nunca tive um cachorrinho mas com certeza ficaria bem chateado, a morte é uma coisa bem chata e inevitável, quando ela tava grávida eles já haviam combinado um troço assim, tipo aquele filme horrível A Vida é Bela, aquele do cara que fica enganando o filho o tempo inteiro dentro do campo de concentração nazista e o cara mente tão bem que o molequinho nem desconfia que está correndo perigo de vida por sorte meu pai não mente tão bem e minha mãe nem se fala, a voz dela desafina quando ela mente, tá falando normal assim, e, quando a mentira começa a ser contada as palavras vão saindo em uns blocos diferentes, um maior que o outro, uma coisa muito bizarra, vai ser engraçado quando ela cair na real e parar de chorar nas visitas e resolver conversar direito comigo por que eu duvido que ela consiga ter uma conversa sincera, vai ser uma mentira atrás da outra, como sempre meu pai ainda não veio me ver e eu acho ótimo, vou me preparar por que mais cedo ou mais tarde ele vai querer matar a curiosidade de ver minha cara e tudo mais, é o tipo curioso, o tipo que, quando tem um acidente de transito, daqueles envolvendo motoqueiro e ônibus, pára e fica olhando, perguntando como foi e o que aconteceu, fazendo aquela cara de quem chupou limão dizendo, viixe, não é por mal que ele adora uma desgraça alheia, na certa essas coisas fazem ele pensar que de algum modo ele tem muita sorte, precisava ver a cara de satisfação que ele fazia quando chegava naquela parte em que o lobo-mau sopra a casa de palha do porquinhos preguiçoso, ele é do tipo que adora tragédia mesmo que não admita uma vez ele veio todo solene, por dentro ele vibrava, seu primo morreu, ele disse, antes ele do que eu, respondi, ele ficou uma fera, me deu tapão na orelha, raramente ele me batia, sabe, por não ter muita intimidade comigo, já minha mãe, mesmo com toda a sensibilidade dela, sempre me dava uns tapas, eu e minha mãe somos muito mais íntimos, a gente dividia a mesma escova de dente, bebia no mesmo copo, usava a mesma toalha... é meio chato admitir, mas, se ela tivesse mais intimidade com outras pessoas, finalmente eu seria feliz por que não apanharia tanto, se ela arrumasse um namorado, mas, quem vai querer uma mulher como minha mãe, desafinada e carente demais,essa é a verdade mas eu ainda não contei como foi que eu arruinei os planos daqueles dois, isso foi engraçado, foram vários passos, não é fácil desarmar um plano de uma vida inteira, mas, agora que consegui, terei tempo e disposição pra contar, aqui o tempo passa muito devagar e eu não tenho escolha a não ser falar e falar como arruinei o plano que meu pai e minha mãe tinham para me tornar um cego.


I’m sick and tired of hearing thingsFrom uptight, short-sighted, narrow-minded hypocritics All I want is the truth Just gimme some truth!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Mundão


Ele está indo embora. Seu olhar é perdido e vago.
- Tá pensando em quê?
- No Mundão.


E eu me pergunto o que afinal é o Mundão?




quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O Louco




- Essa tatuagem nunca te causou encrenca?

- Como assim?

- Ora, com a polícia...

- Que nada senhor. Sempre fui enquadrado e os polícia perguntava “e essa tatuagem aí de ladrão?” e eu metia o louco e dizia “foi um cara mais velho que fez em mim quando eu era criança, não sabia que era apologia ao crime” e eles nem faziam nada comigo. É só entrar na mente deles, desenrolar uma idéia.


Meter um louco é uma gíria, significa “se fazer de bobo”. O palhaço tatuado no braço dele parece louco. Deve ser parente do Coringa do Batman, o Joker do baralho, que é o Bobo da Corte, aquele de chapéu com guizos nas pontas, bobo que de bobo não tem nada.

Coincidências que deixam a gente pensando...


Será que existe isso? Uma coisa puxa outra e no final tá tudo meio relacionado?


Será que é sério essa história de inconsciente coletivo, o panteão de figuras simbólicas que representam tendências comuns do comportamento humano universal, atemporal, aquela história de arquétipos da psique, esse papo estranho de psicólogo esquisíto?


Quem procura acha. Vejam que coisa intrigante. Achei esse livro no sebo:



“O LOUCO é um andarilho, enérgico, ubíquo e imortal. É o mais poderoso de todos os Trunfos do Taro.


Como não tem número fixo, está livre para viajar à vontade, perturbando, não raro, a ordem estabelecida com as suas travessuras. Como vimos, o seu vigor o impulsionou através dos séculos, onde ele sobrevive em nossas modernas cartas de jogar como o Coringa. Aqui ainda se diverte confundindo o Estabelecimento. No pôquer fica louco, capturando o rei e toda a sua corte. Em outros jogos de cartas surge quando menos se espera, criando deliberadamente o que decidimos denominar um erro de carteio.

Às vezes, quando perdemos uma carta, pedimos ao Coringa que a substitua, função que se adapta muito bem à sua coloração variegada e ao seu amor do arremedo. Na maior parte do tempo, entretanto, ele não serve a nenhum propósito manifesto. Talvez o conservemos no baralho como uma espécie de mascote, como as cortes de antanho conservavam o seu bobo. Na Grécia, acreditava-se que o fato de ter um bobo em casa afastava o mau-olhado. A retenção do Coringa em nosso baralho servirá, porventura, a uma função similar, de vez que as cartas de jogar, segundo se afirma, são "as figuras do diabo".

O Coringa liga dois mundos - o mundo contemporâneo de todos os dias, onde quase todos nós vivemos a maior parte do tempo, e a terra não-verbal da imaginação habitada pelos personagens do Taro, que visitamos de quando em quando. Como Puck, o bobo do Rei Oberon, o nosso Coringa move-se livremente entre esses mundos: e, como Puck, às vezes, os confunde um pouco. A despeito dos seus modos enganadores, parece importante conservar o Coringa no baralho moderno para que ele possa ligar os modernos "jogos que a gente joga" ao mundo arquetípico dos antepassados. Ele, sem dúvida, observa e relata o que fazemos a Alguém Lá em Cima.

Agir como espião do rei, com efeito, era uma função importante do bobo da corte.




EITA!







terça-feira, 27 de outubro de 2009

Ética




-Companheiro, vou te explicar o que é Coisa. Coisa significa tudo que não procede pelo Certo, entendeu?
-Entendeu.
- Estuprador é Coisa. Polícia também é Coisa. Dedo-duro, X-9 também...Coisa é tudo que é ruim, que não anda pelo Certo, certo?
-Certo.
-Por exemplo, outra coisa que não é o Certo é roubar pedestre.
-Como assim? Quer dizer que eu sou Coisa?
-Não disse isso. Mas roubar pedestre no meio da rua não é o Certo.
- Mas eu roubo pedestre, sempre roubei na rua!
- Quem rouba pedestre é Nóia. Rouba celular pra comprar droga!
- Eu não sou Nóia! Só roubo Pleibóio na rua. Ë por necessidade Tio!
- Pleibóio não anda a pé mano, Pleibóio só anda de carro! Não é Certo roubar quem anda a pé.
- Não, na minha quebrada não tem disso não! Eu roubava na Vila Mariana, lá tem só Pleibóio e Madame!
- E porteiro... E empregada doméstica... gente da sua quebrada.
- Tô nem vendo!
- Não é o Certo. Larga de ser cabeça dura.
- Eu roubo por necessidade, azar de quem trombar comigo!
-Você vai se arriscar pra roubar pedestre, vender celular por preço de banana? Quanto você ganha vendendo um celular roubado?
- Quem disse que é só celular?
- Companheiro, presta atenção: estou tentando abrir sua mente, roubar pedestre não é o Certo!
- Por quê? Qual a diferença?
- Porque você atraca num trabalhador, um pai de família, tiazinha no ponto de ônibus que acabou de receber um salário mínimo. Podia ser até parente meu, seu, ta ligado?
- Não desvaloriza meu corre não! Roubo pedestre mas só quem tem uma aparência de rico.
- E tá escrito na testa quem tem ou quem não tem dinheiro?
- Mais ou menos, né?
- Tá, mas e aí? Cê roubou na rua, tá preso, perdeu tudo. Valeu a pena?
- Não vim preso roubando pedestre. Roubei um coreano, vai dizer que não é certo roubar chinês, coreano?
- É diferente.
- Esses caras tem é mesmo que se foder. Os caras tão aqui tudo ilegal, não pagam imposto nem porra nenhuma, vai dizer que isso não é Certo?
- É diferente companheiro.
- É moleza roubar coreano. Eles tem dinheiro em casa. Eles são tudo dono de contrabando e nem podem ir na delegacia prestar queixa por que tão tudo com documento vencido.
- É quente. Mas que azar heim companheiro?

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O dia em que a terra parou (micro-peça-tragicômica)



“Foi assim
No dia em que todas as pessoas
Do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado

em todo o planeta
Naquele dia, ninguém saiu saiu de casa, ninguém”


“E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão, também não tava lá
e o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar”

(toca raul)


CENÁRIO: Sala do diretor de uma unidade de internação provisória. Uma mesa com um computador e uma pilha de processos. Atrás da mesa, na parede, um cartaz enorme com a foto do Diretor orgulhoso comprimentando um jovem vestido de operário, onde se lê em letras garrafais:

“Medida Sócio-Educativa: estamos com a mão na Massa!” "Cursos profissionalizantes para um futuro melhor”


Sentado atrás da mesa, o diretor da unidade olha para tela do computador com olhar perplexo:


Entra na sala um guarda. Puxa a cadeira e senta.


DIRETOR – Tudo tranqüilo?

GUARDA – Até demais.

DIRETOR – Não chegou nenhum adolescente?

GUARDA – Ainda não.


Silêncio desconfortante.


DIRETOR – Como é que se explica isso?

GUARDA – Meu cunhado que é polícia também tá besta de ver. Eles não tão conseguindo nem forjar os malandros. É como se todo mundo tivesse desaparecido.

DIRETOR – Isso é impossível, é muito adolescente!

GUARDA – Pois é. Mas tá acontecendo. Ou melhor, não tá acontecendo. Nenhum crime com menor de idade. Tô desconfiado que é o crime organizado dando um toque de recolher em todos os adolescentes.

DIRETOR – Orra, mas vai ser organizado assim lá na casa do chapéu! São 45 dias sem um, eu disse um beózinho!!!

GUARDA – É coisa de loco. Eles devem estar planejando um ataque surpresa daqueles! Vixe! Deixa todo mundo assim, desprevenido pra depois, ó...


Toca o telefone.


DIRETOR - Alou? Sim, é ele... é realmente uma crise... o prejuízo não é só da sua empresa... ok, nos vemos no tribunal. Passar bem!

GUARDA – Era da Bandeko’s - Marmitex Blindado?

DIRETOR- Sim.

GUARDA – E eles vão processar o senhor?

DIRETOR – Vão.

GUARDA – Por causa das marmitas que sobraram?

DIRETOR – Um milhão de refeições quentinhas, tudo jogado no lixo. Dizem que somos responsáveis pelo disperdício.

GUARDA – Eu fiz minha parte, comi 3 bandecos por dia. O problema foram os outros 999997 que sobraram...

DIRETOR - Dizem que eu omiti informação, que eu manipulei os relatórios, droga! Eu só estava esperando algum adolescente aparecer e comer alguns bandecos!

GUARDA – É. Não dá pra confiar nesses adolescentes...


Toca o telefone de novo.


DIRETOR – Alou? Oi Pastor, tudo em paz... eu sei... mas o que a gente pode fazer? Vamos aguardar... não, não chegou nenhum menino ainda... é... Mas o senhor pode vir pregar pra gente, será um prazer, de certa forma nós também estamos presos, he, hê, hê... é sério, venha sim, nós também precisamos ouvir palavras de conforto, como não?... entendo.. deve ser mesmo um milagre, graças a Deus. Até mais, fica com Deus...


GUARDA – Era o pastor Bello?

DIRETOR - É.

GUARDA – Aquele que trazia um cavaquinho, cantava pagode gospel?

DIRETOR – O próprio.

GUARDA – Nossa! Os adolescentes adoravam ele. Será que ele vem?

DIRETOR – Não. Sem platéia a palavra de Deus ele não prega, muito menos com o cavaquinho.

GUARDA – Ah, meu Deus...


Silêncio. O Diretor olha para o computador e vai ficando com a expressão ainda pior.


GUARDA – Mas sabe que o lado bom disso tudo é que a gente, sem os meninos aqui pra tomar conta, pode botar a cultura em dia, ler uma revista, um livro, aprender a jogar xadrez... eu não fico de bobeira não. Tinha um toca-disco e um megafone dando sopa no almoxarifado e com esse tempão sem fazer nada fui mexendo no bicho, com paciência, de pouquinho em pouquinho, eu fui pegando a manha, sabe? No começo parece complicado, mas até que tô inventando umas rimas... vou mostrar pro senhor.


O Guarda sai da sala, deixa o Diretor sozinho e triste.


DIRETOR – não é justo...


O Guarda volta com o aparelho de som e um microfone. O Diretor levanta da cadeira fica diante do poster, com as mãos na cintura e suspira. O funcionário vira a tela do computador e lê em voz alta as notícias.


GUARDA – “Ultimas notícias da Vox do Brasil: Governo transformará reformatórios e casas de detenção em balneários


Devido a inexplicável redução de atos infracionais evolvendo menores de idade, o governador do estado cogitou ontem, após o almoço beneficente com representantes da ONU, a possibilidade de substituir as casas de detenção para menores infratores em sedes da nova secretaria de Esportes Aquáticos.

“Também estou espantado e ao mesmo tempo aliviado com a queda repentina da delinquencia juvenil. Finalmente poderemos andar com a capota dos nossos carrões conversíveis abertas, sem medo, sem nenhum receio de algum capeta em forma de guri nos amedrontar com aquele olhar faminto e ganancioso, ofuscando o brilho de nossas pulseiras e relojões de ouro e diamantes. Eu não sei pra onde eles foram e nem quero saber, mas isso, certamente, é uma coisa boa, não é mesmo? Se eu pudesse parabenizaria cada um desses jovens que não estão fazendo nada errado, que, do dia pra noite, tomaram juízo. Mas... nossa! Deve ser gente pra caramba! O importante é que o fim desse problema social é o início da Secretaria de Esportes Aquáticos. Vamos adaptar essa triste estrutura para desenvolver o potencial aquático dos atletas do Jet Sky e afins, custe o que custar! Estamos de olho nas Olimpiadas, e o Brasil é um país hídrico, né?”


GUARDA- Eita...

DIRETOR (desesperado em prantos) TUDO FOI POR ÁGUA ABAIXO! TANTO ESFORÇO PRA TIRÁR O JOVEM DO MAU CAMINHO E ASSIM QUE ELES RETRIBUEM? VIRAM AS COSTAS, SOMEM COMO SE NUNCA TIVESSEM EXISTIDO? ISSO NÃO É JUSTO! ESSES ADOLESCENTES DE UMA FIGA NÃO PODEM FAZER ISSO COMIGO! NÃO! NÃO!NÃO!!! O QUE VAI SER DA GENTE? É MEU EMPREGO, O QUE FAREI DA MINHA VIDA!!!!


GUARDA (ligando a aparelhagem) Olha, o senhor eu não sei, mas eu vou investir nesse negócio de música, é mó barato, se liga na batida:


(Batida de funk)


“Essa noite eu tive um sonho
de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei
Com o dia em que a Terra parou
com o dia em que a Terra parou...”


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Que Brisa!!!


Cabelo raspado, usando moleton, meia e chinelo. Um mar de cabeças de todos os tamanhos olham na mesma direção. A Avenida Paulista está tomada deles.
- estamos livre!
- o mundão é nosso!
Por todo canto, serpenteando a multidão de meninos, anúncios da Nike, Adidas, Motorola, Honda, Ecko, Ciclone, Oakley e outras marcas jovens.
- já raiou a liberdade graças a Deus.
- Deus é uma nota de 100
Meninos são soldados voltando da batalha. Um reconhece o outro. Estão emocionados.
-você não é do Capão Redondo?
-eu tava em Franco da Rocha, na 28, lembra de mim?
-não, não, eu passei pela 10 e depois pela 36, no Brás, encontrei seu irmão duas vezes..
- manda um salve quando você encontrar ele.
- nem acredito que eu tô aqui fora!
- graças ao nosso advogado, o cara é zica!
- só.
- é aquele maluco ali montado no elefante que libertou todo mundo de trás das grades!
Ele aparece montado em um rinoceronte patrocinado pela Ecko. É tão grande quanto um carro alegórico, mas o animal está vivo. Está vestido igual aos outros mas segura um microfone. Ele é igual aos outros na aparência. O rinoceronte da Ecko avança lentamente dentro da multidão.
-Ele que tá conduzindo o bonde da nossa liberdade?
-Ouvi dizer que é.
-O cara deve se achar Jesus Cristo...
-Ouvi dizer que ele é mó firmeza.
Todos estão se abraçando, conversando, rindo e chorando. Não percebem a presença do líder, que lentamente se posiciona no centro do mar de cabeças raspadas. Levanta o microfone em saudação coletiva. Uma onda poderosa responde seu gesto.
-Se ele vier com arrogância pra cima de mim não vou deixar barato não! O que ele quiser eu quero em dobro!
-Se liga, faz uma na voz aí.
-Acho que ele vai mandar a idéia...
O silêncio impera. Chegou a hora do garoto no rinoceronte falar. De costas, podemos ver sua silhueta coberta de sombras. Os meninos emitem luz sobre ele.
- Solta a voz moleque!

EU... ?

O rosto dele está em pânico, como se ele não soubesse o que dizer. Como se ele tivesse prestes a dar uma notícia terrível ou confessar algum segredo pessoal muito, mas muito comprometedor. Sua expressão confessa o medo diante aquele exército de gêmeos. Alguma coisa não está nada bem. Mas ninguém percebe. Parecem crianças diante do Papai Noel, com um sorriso no rosto e um brilho nos olhos, esperando.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Senhora


As professoras usam um jaleco por cima da roupa, azul claro ou branco, com o crachá da instituição pendurado no pescoço. Elas passam 9 horas por dia dentro da unidade. A presença dessas mulheres na unidade de internação provisória é fundamental para contrapor a testosterona do lugar. Mulheres num barco pirata.
Algumas já foram professoras de escola pública, outras são mães. Algumas já foram assaltadas, outras tiveram sonhos embargados. Algumas são muito jovens, outras muito velhas. Algumas estão com hérnia de disco, outras namoram escondido com agentes de segurança. Algumas adotaram meninos, outras fizeram curso de direito e são respeitadíssimas. Algumas afirmam não saber fazer nada além de ensinar, outras desejam subir na hierarquia da instituição e isso significa um cargo administrativo, quanto menos contato com os meninos melhor. Algumas fazem aula de Yoga, outras acreditam que apenas os cursos profissionalizantes salvam. Algumas alfabetizam na prática semanal de cartas, outras trabalhavam em outra área completamente diferente da educação e caiu de pára-quedas alí devido a necessidade. Algumas nasceram para estar presas alí, outras não.
Independente de quem elas sejam são sempre tratadas pelo pronome de senhora, a única coisa afinidade entre elas.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Saída


O menino não está mais vestido com o uniforme da unidade. Ele está usando roupas especiais para encarar sua majestade o Juiz. Em dias de audiência ele não usa chinelos. Um elegante conjunto de tênis azul sem cadarço, modelo iate, calça social bege e camiseta pólo azul clarinha é o que todos devem usar. Um uniforme completamente diferente de qualquer roupa jovem. A impressào de um garoto humilde e pacífico, essa deve ser a intensão do estilista que desenhou essa roupa. Logo mais um agente de segurança irá algemar o menino que será conduzído até a vara da criança e do adolescente. E lá dentro dois abismos se encontrarão, o juíz e o menino.
O primeiro é velho e senhor do destino. Sua juventude foi marcadas por sacrifícios morais e intelectuais que produziram o ser Juiz. Ganha um ótimo salário e tem respeito da maioria das pessoas.
O outro é jovem e pobre. Cometeu um ato infracional ao invés de estudar e trabalhar. Não sabe qual profissão seguirá nem tem idéia do tipo de adulto que vai se tornar um dia.

-O juiz dá muita lição de moral na audiência?
-Só quando ele vai dar uma semi (liberdade) ou L.A.(liberdade assistida). Mas quem fala um monte mesmo é o promotor, aquele safado.
-E o advogado?
-O advogado combina tudo com eles dois, ele não quer saber de defender a gente não. As vezes é assim, você entra e nem fala nada, só escuta o que eles tem pra falar e pronto.

domingo, 18 de outubro de 2009

Doce


Ele está sentado no banco de madeira no corredor, ao lado da minha sala de aula. Nesse banco ficam sentados por um bom tempo os novatos que chegam e os veteranos da unidade de internação provisória que vão embora. Normalmente vão para unidades de internação onde podem permanecer 6 meses até 3 anos. Mas o menininho aí vai pra casa. Ele deve ter uns 14 anos, passou algumas semanas na unidade mas não teve aula comigo. Está prestes a ir embora. Gosto de puxar conversa nesse momento de partida.

-Tá indo embora?
-Tô.
-Pra casa?
-Sim senhor
-Tá animado?
-Tô animado.
-Que bom.
-Vou pra escola e ajudar minha mãe vender vender tapioca.
-Você gosta mais de tapioca doce ou salgada?
-Doce.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Campeão



É um daqueles meninos gordos da cintura pra baixo, corpo em formato de jaca. Deve ser assim desde criança. Deve ter sido aquele bebê alimentado com maizena ao invés de leite materno. Criança pobre que não conhece fruta, que vê na comida artificial, industrializada e barata o melhor presente de aniversário ou natal. Comida doce e gordurosa. Refrigerante e pouca atividade física. Um menino gordo e pobre com um olhar inocente, meio perdido. Queixo e orelhas desproporcionais que me lembram alguém, um antigo colega que tive no colegial, um cara muito simplório que morava numa cidadezinha vizinha, na região rural do interior do estado. Seu sotaque era bem caipira, parecia um fazendeiro, criador de porcos e gansos que cultivava em sua propriedade grandes abóboras alaranjadas, melancias e rabanetes. É difícil imaginá-lo transgredindo alguma lei. Ele é muito quieto e desenha como uma criança. Mas no ping-pong, ouvi dizer que é imbátivel. Ninguém tira ele da mesa. Acho que é por isso que os outros meninos o respeitam como se ele fosse um campeão.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Professores Veteranos


Nessa mesa ouvi histórias de terror que me amadureceram precocemente. Estamos na sala de professores de uma das unidades de internação provisória, no topo das escadas, numa espécie de sotão. Jantei lá em cima várias vezes, entre a aula da tarde e da noite, e ouvi atentamente várias situações mirabolantes narradas pelos meus colegas de unidade, professores veteranos, essas duas destemidas criaturas, retratadas no desenho acima.
Certamente eu teria enloquecido, mas eles não. Estão lá, firmes e fortes no corpo pedagógico, trabalhando diariamente com os meninos. Ele em educação física e ela em artesanato.
O cotidiano deles é tranquilo, hoje. Antigamente era bem mais difícil. Foi o que eu ouvi e acredito. -Hoje em dia está muito melhor. Ainda tem muito que melhorar mas evoluiu muito, muito.

Os dois estavam lá enquanto eu assistia pela televisão, as notícias das mega-rebeliões, o fogo nos colchões e os meninos em cima dos telhados com facas de ferro nas mãos e tarja preta nos olhos. Eles estavam lá e eram reféns, moedas de troca entre o diretor da unidade e os "faxinas", lideres dos meninos presos. Eles trabalharam em várias unidades e assistiram a ira adolescente, a violência, a total falta de ordem e pânico. lá Em cima do telhado, vários metros longe do chão, ouviram mais de uma vez a pergunta: - Já viram funça voar? "Funça" é o adulto responsável pela segurança e disciplina na unidade, alvo de fúria, inimigo natural do menor infrator. (eu acho que existe uma projeção pai-filho entre os dois, um complexo de Édipo, Freud explica tanto ódio)
Eles assistiram gerações de meninos, antes da invenção da garrafa PET. Diariamente estão nessa labuta, com os meninos. Presos.
-Se vocês pudessem traçar um perfil psicológico dos meninos, da origem social...
-Tem de tudo. Todo tipo de menino vem pra cá. É sempre igual mas diferente. Como uma cobra de 7 cabeças, corta uma e nasce 4 no lugar.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Chupa-Bife



Chupa-Bife é o nome que se dá aqueles que não possuem mais o dente da frente. Pensei que fosse um apelido específico de alguém mas é um nome genérico. Outra coisa genérica é que nenhum Chupa-Bifes tem pudor de sorrir. Eles não estão nem aí. Perderam o dente mas não perderam o humor. E estão sempre mostrando a "janelinha". Pelo menos foi isso que notei até agora.
Não quero dizer que eles gostam dessa situação, ninguém gosta de estar banguela. Mas, separados do convívio social, junto com um monte de outros meninos-durões, não ter um dente é quase como um troféu. Um sorriso sem um dente pode expressar uma coisa mais ou menos assim "dou a minha cara a tapa, não tenho medo de nada, pode vir!"
Pode ter perdido um dente num acidente de moto ou skate. Numa briga com a polícia ou com algum desafeto. A falta de um dente é uma espécie de cicatriz.
Outra causa menos glamourosa é o uso de crack. Ser viciado em crack não rende prestígio entre os meninos presos, pelo contr;ario. E todo viciado em crack perde a dignidade e os dentes da frente.
Mas esse "Chupa-Bifes" que eu retratei não era viciado em crack. Era aprendiz de garçom e perdeu o dente numa briga com seu antigo patrão. Muito educado e integro. Fazia perguntas inteligentes e argumentava com perspicácia. Mas de vez em quando, acho que era por brincadeira, fazia umas vozes estranhas, como se tivesse recebendo uns espíritos. Os meninos falavam que era um Exu, entidade hardcore do baixo espiritismo. Dava medo. Ele estava sentado na carteira e do nada soltava uma gargalhada fatal: REAH!REAH!REAH!REAH!REAH!REAH!REAH...

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Obturação em dragão


Ele entrou na sala de aula com cara de dragão.
-Leva mal não senhor, mas eu estou com dor de dente, não consigo fazer nada.
E debruçou na carteira. Cutuquei, ele levantou a cabeça com a cara mais amarga. Como se fosse um especialista no assunto, pedi pra ele mostrar o dente e AAAAAAHHHHH, abriu o bocão sem cerimônia para provar que era sério. Um molar destruído por uma cárie preta. Lembrei da minha pior dor de dente, a dor que a gente nunca lembra direito quando não está sentindo, mas faz idéia. O dentista não fica diariamente na unidade.Tomar um analgésico na enfermaria? Improvável pra não dizer impossível. Remédio só se a coisa for grave. Se a coisa for grave, levam no pronto-socorro.
Não gosto de ver ninguém sentindo dor. Queria fazer alguma coisa. Sempre tenho comprimidos de dipirona, analgésico companheiro desde quando peguei dengue, pensei em dar um comprimido escondido. Não ia curar mas ajudaria durante algumas horas. Será?
Mas isso poderia causar sérios problemas, principalmente se ele for alérgico, dou ou não dou? Com o estômago vazio, o comprimido pode bater e fazer um buraco, uma úlcera hemorrágica, já ví isso acontecer. A dipirona está muito fácil, um comprimido ao meu alcance. O garoto ficou em paz, a aula inteira debruçado, ruminando sua dor, sem dar um pio. Fui embora pensando na merda que um comprimidinho pode causar naquela situação. E em estar preso sentindo dor. E na liberdade precária que provoca esse tipo de cárie. E nos ricos que gastam dinheiro com cerca elétrica, alarme e camera de vigilância, devem achar pouco sofrimento uma dor de dente.

Na aula seguinte a cara dele já estava bem melhor, participou da aula e tudo. Perguntei do dente e ele disse que parou de doer sozinho. Deixa ver... AAAAAAHHHHH... Vixe, tá feio ainda heim? Mais um pouco... AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH...
Fiz o desenho do dente podre como se estivesse obturando-o. Minha patética armadura de professor de histórias em quadrinhos permite tamanho atrevimento. Ele ficou surpreso com o tamanho da cárie. Não tem nenhum espelho na unidade de internação provisória. Um dente a menos, pode crer, ainda bem que não é na frente, que sorte!
Na semana seguinte ele perdeu o molar para sempre.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Controlando o tédio


Na porta da unidade tem um guarda. Ele não é truculento, nem está armado. Ele apenas confere meu crachá e abre o portão de ferro. Boa tarde, boa tarde. Eu entro e ele fica lá esperando o próximo entrar. Ele fica boa parte do tempo parado. As vezes ele senta, mas no geral fica em pé, olhando pela pequena grade a rua. Durante um platão de 12 horas ele está tão preso quanto os meninos, abrindo e fechando um portão da unidade. Com o tédio sob controle, está satisfeito por que tem um emprego e ocupa um lugar honesto no mundo de hoje.
O lugar que a gente ocupa no mundo, aquilo que perguntavam pra gente "o que você vai ser quando crescer?" Normalmente a gente respondia o nome de uma profissão, que podia ser real ou não, só pra atender a expectativa dos adultos. Mas a pergunta não é essa. A pergunta, ao pé da letra é "o que você vai SER quando crescer"?
SER alguém ou alguma coisa. No final das contas a gente cresce e nem entende isso direito, esse negócio de SER alguém. Eu me lembro de ter medo de ser alguém que eu não queria. E eu não queria ser a maioria dos adultos que eu conhecia. Eu tinha medo de quase todas as profissões. Eu não entendia, por exemplo, como um homem era capaz de dirigir um ônibus pelas ruas sem bater nos outros carros. Não me imaginava lidando com documentos importantes, papéis que não podiam ser perdidos, papéis que cabiam em um envelope e representavam coisas grandes como casas ou fazendas. Tinha medo de errar minha própria assinatura, já que ela tinha que ser sempre idêntica, me imaginava arruinando escrituras e perdendo bens muito caros.
E tinha aquele sujeito que curava as pessoas, o médico, aquele que ajuda as mães no parto e que curam as pessoas com remédios. Deve ser por isso que toda mãe acha uma boa idéia ter um filho médico. Mas pra mim não dava. Meu primo mais velho já tinha essa idéia e eu deixaria as pessoas morrerem nas mão dele. Acho que essas profissões que exigem muita responsabilidade me assustavam.
Durante um tempo pensei em ser carpinteiro. Fazer móveis e brinquedos de madeira. Eu poderia construir tudo que eu quissese com madeira. Mas havia um senhor que morava perto de casa que não tinha um braço. Ele era o zelador do parquinho onde eu brincava, conhecido como Seu Joaquim Sem-Braço. Na minha fantasia infantil ele havia perdido o braço em uma marcenaria, cortando madeira com uma serra elétrica. Carpinteiro eu não seria, nem a pau.
E assim fui crescendo e achando que ocupar o lugar no mundo não era algo muito fácil. Não era só uma questão de escolha. Havia uma porção de forças que te colocavam e te tiravam do sonho. E havia o sonho dos outros, as expectativas dos outros na gente. Meu pai, por exemplo, não sabia desenhar nada mas gostava muito do assunto. Acho que ele tentou aprender e não conseguiu. Não sei o quanto se esforçou mas isso certamente é uma frustração dele. Quando percebi isso, fui em frente e esse acabou sendo o meu lugar no mundo. Ser melhor que meu pai em alguma coisa.
Eu acho que os meninos em geral sofrem esse mesmos conflitos existenciais. Controlar o tédio, aprender a fazer coisas e conciliar as ilusões com o arroz e feijão.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O Monstro de Pão


Era seu primeiro emprego, numa panificadora. O garoto não tinha experiência alguma na arte de fazer pães. Ele só pensava no salário no fim do mês. Nos quatrocentões que ele usaria pra comprar um tênis Adidas 12 molas. Um tênis monstro!
Mas a sorte não estava ao seu lado. Os pães que ele fez não cresceram. Ele errou na quantidade de alguma coisa. Seria na farinha? No óleo? No fermento?
- Olha aqui garoto, eu estou te dando essa oportunidade de trabalhar mas você não está aproveitando. Se esse pão não crescer eu vou te mandar embora por justa causa!
Aquelas palavras abalaram o jovem aprendiz que só pensava no seu tênis, no imenso prazer que sentiria pisando sobre aquelas 12 molas. Poderia pular qualquer obstáculo. Poderia correr atrás de qualquer sonho. Vestindo os pés com aquelas 3 listras paralelas, as mesmas usadas por vários campeões, finalmente ele venceria. Ou teria a sensação de vencer na vida.
Olhava aquele enigma, a batedeira gigante era uma esfinge. Os ingredientes da pasta-pão eram misturados em quantidades precisas antes de ir para o forno. Olhava para as hélices em movimento e se perguntava qual ingrediente estava em desproporção: Farinha? Óleo? Fermento? As hélices giravam e o tempo passava. Pães grandes, era o que o chefe queria. Na dúvida, adicionou tudo, todos os pacotes e latas do estoque, inclusive o fermento. Aumentou a potencia da máquina e observou a pasta-pão crescer.
E a pasta-pão começou a crescer e trasbordar para fora do caldeirão. O garoto desesperado tentava colocá-la de volta. O suor escorria do seu rosto e se misturava a pasta-pão que só sabia crescer e crescer. Finalmente foi envolvido e sugado para o interior do caldeirão e dilacerado pelas hélices em potência máxima.
-AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!
Seu corpo e sua consciência fora misturados ao fermento, a farinha e ao óleo. Sim, o menino morreu mas alguma outra forma de vida surgiu daquela mistura. Um terrível mosntro de pão, meio homem, meio pasta. Que urrava e gemia assim:
-AGORA EU VOU CONSEGUIR O MEU ADIDAS 12 MOLAS!!!!!!
E sociedade sofreu com a vingaça dele.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Azar


Quando ele entrou na sala de aula, deslizando sobre as duas rodas, muito tímido e perdido, perguntou que aula ele estava. Respondi STREET DANCE, só pra ver a reação dele. Brincadeira garoto, aqui é a aula de histórias em quadrinhos. Ideal pra quem está bom da cintura pra cima.
Era minha vez de perguntar o que todo mundo pergunta. Ele quebrou o fêmur num acidente de moto. A perna vai ficar boa um dia. Foi capturado pela polícia durante o acidente. Isso eu soube depois da aula, durante a execução desse retrato. Conversamos durante uns 30 minutos, tempo que eu levei para desenhá-lo.
Contou que trabalha e estuda. Mora na periferia. Nunca passou por uma delegacia. Gosta muito de jogar bola. O dia do acidente foi um dia de azar. Voltava do trabalho pra casa, entre as baldiações do transporte público quando um conhecido lhe ofereceu carona. Montou na garupa da moto e saiu feliz da vida, chegaria mais cedo em casa. Um carro fechou os dois em cima da moto foram pro chão. O carro fugiu, a moto e o menino permaneceram no chão. O colega também fugiu. Porque? No chão, ele não sabia de nada. Notou que a perna estava torta. Socorro, resgate. hospital, polícia, e uma moto roubada. Ele entrou numa roubada. Fêmur partido, cirurgia, 26 pontos, e muita fisioterapia pela frente. Acusado de roubo, aguarda audiência numa unidade de internação provisória. Cumpre a medida sócio-educativa em cima de uma cadeira de rodas. Está preso. Tem 16 anos, mora na periferia. Pode ser tudo verdade, provavelmente.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Nicotina (antes da lei anti-fumo)



Quando saí da oitava série e mudei de escola, em 1896, o primeiro choque que tive era que todo mundo fumava cigarros no colegial. Dentro do colégio mesmo. Alunos e professores. Muita gente deve ter começado a fumar naquela época, fazendo performance juvenil durante os intervalos. Mas deve ser um alívio sair de uma aula de álgebra e fumar um cigarrinho. Eu nunca fumei mas imagino que a nicotina deve ser um mini-orgasmo no cérebro. Os neuro-transmissores de um fumante devem bater palminhas ao ouvirem o barulho de um isqueiro ou palito de fósforo.
Curiosamente também fiquei chocado quando notei que os meninos presos fumavam dentro da Cadóca. E era meio religioso esse momento de fumar, umas quatro vezes por dia. Essa hora sagrada se chamava BRASA. Normalmente acontecia no corredor em frente aos dormitórios. Sentados, um ao lado do outro, e as vezes mais de um dividindo o mesmo cigarro.



Os cigarros eram trazidos pelas visitas aos sábados. Só podia Derby azul. Eles eram etiquetados e nomeados, separados por dormitório e guardados numa caixa de madeira trancada com cadeado. Na hora da brasa a caixa era aberta e um a um era chamado para receber um cigarro da mão do funcionário. E ficavam lá, em silêncio, sem performance alguma, baforando fumaça, fumaça que permanecia eterna no ar porque o ambiente não tem janelas abertas nem ventilação. Era de arder os olhos.

Achei cruel. Achei imoral. Por que além de fazer mal e tal, a brasa me pareceu claramente uma forma de controle psicológico, um acssédio moral. Por que para quaquer indisciplinaa, a primeira punição era ficar sem fumar. E na surdina, aqueles que colaboravam, que faziam tudo direitinho, eram recompensados com cigarros. Certamente isso contradiz alguns rudimentos básicos do Estatuto da Criança e do Adolescente.



Quando saiu a Lei anti-fumo, que proibe cigarros dentro de ambientes fechados, achei haveria rebelião ou nào iriam respeitar a lei. Era inconscebível a brasa não existir. Mas por incrível que pareça nada disso aconteceu. E a brasa não existe mais. E ninguém se machucou por isso. Pelo menos por enquanto.
Mas, mesmo sendo a favor da saúde, da libertação do vício, chego a lamentar por não existir mais esse momento. Os meninos me contam que ao fumar um cigarro em silêncio muita coisa passa pela cabeça. São 5 minutos de paz, reflexão, momento de imaginar o futuro, de acalmar a mente e o coraçào. Lamento por esse momento não ter sido substituído por algo melhor que a TV. Entre a televisão e a brasa, acho a segunda opção menos nociva a saúde.

domingo, 4 de outubro de 2009

A Quebrada



Eu havia prometido pra mim mesmo que só postaria desenhos e textos meus. As vezes me perguntam por que eu não exponho trabalho dos meus alunos e minha justificativa é simples: eles não podem assumir a autoria. A identidade deles deve ser preservada, aquela história de tarja preta nos olhos que eu respeito.
Mas hoje vou quebrar o protocolo e mostrar um belo desenho feito na aula de histórias em quadrinhos. Mesmo que eu não possa revelar a identidade do autor, acho que vale a pena mostrá-lo. De vez em quando farei isso. De vez em quando acho que não tem problema.
Esse desenho representa a quebrada do menino. A quebrada é o bairro de onde ele vem. Quebrada também é o nome que se dá ao menino que vem do mesmo bairro que eu. "Fulano é meu quebrada", isso quer dizer que fulano é do mesmo bairro ou região de onde eu venho, ou seja, meu conterrâneo, meu "quebrada". Em geral a quebrada fica na periferia. Eu nunca ví ninguém se referir a uma quebrada no centro, mas, vai saber!
Mas, voltando ao desenho, reparem na perspectiva intuitiva, que bonito isso, prédios maiores no primeiro plano e menores no fundo, e as escadas, os caminhos tortuosos, mostrando uma parte superior e inferior, dando idéia de um terreno acidentado. Um morro?. E tem a diversidade dos prédios, casas e telhados, tudo diferente, aquela construção caótica e periférica. Os números das casas e até uma placa de aluga-se. Eu não dei nenhuma sugestão técnica. Só o material de desenho básico: Papel e lápis 6B. Ele se concentrou e fez esse desenho sozinho. Eu não me atreveria a sugerir nada além disso. Achei perfeito. Fiquei sinceramente comovido por que, com toda a simplicidade que a falta de técnica proporciona, ele conseguiu fazer uma bela composição, um belo e eficiente desenho. Seu lar, sua quebrada.



Essa é minha versão da quebrada. Uma cópia feita por mim mesmo a mão. Usei pincél fininho e nankim preto. O original ficou com o menino. Ele entregou para a mãe dele no dia de visita. A maioria dos desenhos feitos na minha aula tem esse destino. Tomara que ela guarde bem e veja a mesma beleza que eu vi.

sábado, 3 de outubro de 2009

MC quer dizer "MALUCO QUE CANTA"


Posso ser problemático mas não sou besta, dizia ele sempre que se sentia oprimido.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O Iluminado


A primeira vez que eu ouvi o termo "pedrinha" achei que fosse sobre os meninos que fumam pedra. Deve ter começado assim mesmo. Pedrinha era o pequeno viciado, muito jovem, perambulando pelo centro, debaixo de um cobertor, que rouba pra comprar droga. Mas hoje, entre os meninos e funcionários, qualquer menino de pequeno porte é chamado de "pedrinha"
Imaginei um pedrinha iluminado, um menino igual ao filme, que tem a intuição de ver coisas do além. Ele adquiriu esse poder depois de ter comido restos de macumba. E tem a companhia de espíritos de baixo-calão.
De vez em quando ouço algumas histórias de terror que os meninos contam. De meninos se comunicando com exus e prevendo o futuro. Eu ouço com interesse mas não dou minha opnião sobre se existe ou não manifestações sinceras do além ou se tudo não passa de performance cênica.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Ele não vai voltar


Não é todo dia mas, de vez em quando tem alguma mulher chorando no portão da unidade. Do lado de fora, alguma mãe, irmã ou namorada chora pelo menino que está lá dentro. E é um choro de velório, como se ele estivesse morto. E o menino morre mesmo. Morreu ou morrerá, em partes ou completamente.
Alguns vão dizer que ele cresce, amadurece. Outros que a experiência causa revolta. Mas o fato é que, depois da medida sócio-educativa ninguém volta igual. A personalidade dele vai sofrer algum dano. Não me atrevo a dizer se melhoram ou pioram por que isso é muito relativo. Mas o doloroso processo de transformação é inevitável. As mães, irmãs e namoradas sabem disso. E deve ser esse um dos motivos do choro. É a saudade daquele garoto que não vai mais voltar.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Dicionário de gírias


No começo achei que estava diante um outro idioma. Achei que iria escrever páginas e páginas com as gírias que eu aprendia com os meninos. Mas, na verdade, o repertório não é assim tão extenso. Ou será que eu é que não anotei tudo ainda?

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Você gostaria de encontrar esse garoto na rua?


Você gostaria de encontrar esse garoto na rua e olhar nos olhos dele? Admitiria que ele é uma ameaça? Não só pelo olhar oblíquo de mameluco mas pelo seu tom de voz, seu dialeto, sua pouca idade e juízo, seu jeito de vestir, de andar, mesma espécie daqueles assaltantes de banco, fotografados pelo sistema de segurança, esse tipo periférico que carrega a revolta e o ódio contra a classe média, você sentiria medo dele caso encontrasse-o na rua, sem nenhum policial por perto, não é mesmo? Ele é pequeno e magro como um escorpião, seria burrice não desviar dele no passeio público. Se você é valente eu não sou, eu tenho medo sim. E não me atreveria encarar esses olhos terríveis se ele não estivesse atrás das grades e eu protegido com minha patética armadura de professor de histórias em quadrinhos.
Ao retratar esses olhares tento compreender e representar o que estou vendo de fato. A prova dos nove é o reconhecimento do retratado. O modelo tem que aprovar o desenho, se não fica feio pra mim.
Nesse retrato acho que acertei por que ganhei um sorriso dele. Além dos dentes, notei as sombrancelhas desarmadas e a cara ilumida por alguns segundos. Queria ter memória e talento suficiente para retratar essa expressão fugaz de surpresa no lugar dele mesmo. Mas, quem é ele, ele mesmo?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A Mãe e o Menino


Não era sábado, dia de visita. Era um dia de semana a tarde e eu estava na unidade. Encontrei a mãe e o menino juntos, no corredor, depois da minha aula. Era a primeira vez que eu via a mãe visitando um filho. Ela não podia vir no sábado e ele precisava muito dela para chorar e soluçar em seu ombro. Não ví a mãe chorando. Não alí. Ela precisa ser forte, suponho. Uma rocha. Perguntei se eu poderia desenhá-los rapidamente, eu nunca havia sido tão intrometido. Esperando um "não" como resposta, me atrevi mesmo, pois a cena valia a pena. Mas, naquelas condições os dois estavam tão indefessos que não poderiam negar nada. Era uma covardia da minha parte e além do mais um estorvo, invadindo a intimidade e consumindo o pouco e precioso tempo da visita. Por isso tratei de desenhar o melhor e mais rápido que pude.
A mãe, vestida com a roupa da visita, a mesma roupa dos meninos, camiseta de algodão calça de moleton e chinelos. Suas roupas ficaram guardadas lá embaixo, na portaria, onde foi revistada. O menino grande e pescoçudo, quase um homem feito, não se parece com ela.
Se posicionaram como se estivessem tirando uma fotografia mas não se desgrudaram as mãos e as pernas. Pensei que talvez eu não estivesse atrapalhando tanto. Assim mesmo, acelerei.
Foram uns 1o minutos estáticos e silênciosos. Quando terminei, mostrei aos dois e eles sorriram e me agradeceram. Prometi uma cópia do desenho e desejei sorte e força para os dois.

domingo, 27 de setembro de 2009

Tranca


TUDO QUE TRANCA TRINCA, essa frase eu li outro dia num muro. Fique com isso na cabeça. O ferro soldado no metal é até bonito olhando de perto. Olhando de perto quase tudo é bonito.
Deixei a página laranja ao lado. Acho que vou manter assim.

sábado, 26 de setembro de 2009

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Deus Televisão


Os meninos permanecem no pátio enquanto o refeitório está sendo preparado para o jantar. Sentados, em silêncio, sob os pés do grande Deus caixa-de-eléctrons. Estão todos com a cabeça erguida. A cabeça é um pote sem tampa. As imagens entram, se misturam aos sons. Os pensamentos, os olhos, os ouvidos, o brilho dos fotóns, tudo em movimento. O grande Deus microndas-de-informação exige um sacrifício. Ele é fiel e onipresente. Está em todos os lugares e estará amanhã e depois e depois. No bar e lar. Momento da comunhão entre a família e o filho pródigo. O pote se enche de luz e se derrama no espaço. A memória evapora, teletransportada via satélite, a memória é uma nuvem e chove nas periferias. O cérebro é um despacho na encruzilhada radio-sinestésica. Trovões e vozes artificiais lembram o quanto todos são pequenos. Bundas quadradas no chão, as costas estão doendo. No ar, Pokemón.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O mistério do pijama cor-de-rosa-quando-foge


Na unidade onde eu trabalho a cor azul-marinho é padrão. É a cor do moletom usado por todos os meninos. Eles passam o dia todo vestidos assim. Quando faz muito calor, usam bermuda e camiseta branca de algodão. Mas quase todo dia é calça e blusa de moletom. Se faz muito frio, usam um moletom em cima do outro. E meias brancas dentro de havaianas azuis. Dá impressão que todo mundo acabou de acordar e ainda está de pijamas. Eu diria que é um uniforme bem confortável, mas vamos voltar as cores.
A cor padrão é azul marinho, mas, de 100 pijamas 01 é de outra cor. Uma cor que eu não sei o nome, essa que eu tentei reproduzir no desenho acima, um magenta escuro, tem gente que chama de "bordô" eu realmente não sei dizer, mas é mais ou menos essa cor aí, considerando toda a variação de pixels e calibragem do seu monitor. E é claro que eu me pergunto: POR QUÊ essa diferenciação entre os uniformes.
Pergunto para garoto que veste a cor, meu aluno, que posou para o retrato. Ele não faz idéia mas gosta do pijama rosa-choque-encardido. Se pudesse escolher usava todo dia. Sim, porque todos os pijamas são de uso coletivo, ninguém escolhe a cor, saiu da lavanderia, é o primeiro que estiver dando sopa. Ou seja, usar o pink-ferrugem é uma questão de sorte.
Ficamos pensando e levantando hipóteses para justificar esse desvio de padrão:
-A cor estava em liquidação, por isso existem tão poucas peças, ou...
- Alguém comprou um pequeno lote errado, ou...
- Inicialmente essa cor foi destinada para diferenciar os garotos mais terríveis mas vendo que essa tática só piorava o convívio abandonaram a idéia, ou...
- Um estilista com pós-graduação em cromoterapia inventou esses uniformes para "dar uma quebrada na monotonia visual" ou...

Vai saber... Esse é um dos mistérios insolúveis da cadóca dos adolescentes.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Cicatrizes


Não precisamos de lente de aumento para perceber as cicatrizes que os meninos levam no corpo. São marcas grandes e feias, algumas impressionantes, exibidas com um certo orgulho, troféu da coragem e do risco. Os meninos em geral gostam de suas cicatrizes e não se importam de falar sobre elas. Pelo contrário. Por isso, as vezes, eu pergunto a história de alguma cicatriz, só pra ver a capacidade do cara narrar histórias e refletir com ele sobre a sorte e o azar, se vale a pena correr tanto risco.
O menino do desenho tomou um tiro na perna. A tíbia, osso da canela, foi pro espaço. No momento ele foi retratado com essa traquitana ortopédica, não dá pra ver a cicatriz ainda. Pode ser que ele nem tenha cicatriz. A perna dele aguarda uma porção de cirurgias e se o médico for caprichoso, deixará a canelinha dele sem marcas. Mas, pela gravidade do estrago, ele nunca mais terá a perna 100%. A tíbia dilacerada receberá um enxerto da costela, uma frágil cola de osso. Pra endurecer levará meses. Jogar bola, só se for no gol.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Santa Tatoo


Esse desenho eu copiei de uma tatuagem, muito bem feita por sinal, que cobria por completo a parte superior da mão de um garoto de 17 anos. Sua função principal é cobrir uma outra tatuagem tosca, feita aos 13, um cinco-salomão, depois eu explico o que é cinco-salomão, hoje vamos falar da santa. O que me intrigou nessa figura é o fato dela não ter pupilas. Isso dá a ela um ar misterioso e fantasmagórico, como se ela enxergasse o além, como se ela estivesse em transe, como um oráculo prestes a desvendar o futuro. As imagens de santas exercem fascinio entre os meninos presos, principalmente as nossas senhoras da vida. Mesmo com a proliferação dos evangélicos que abominam as imagens. Percebo que a fé é algo bastante arbitrário, e como não seria?
É que as santas representam amor e perdão. Elas são mães místicas, puras e perfeitas. Seu coração arde, ela sofre pelos filhos terríveis mas estão sempre de braços abertos, cheias de amor e perdão. Amor e perdão INCONDISCIONAL. Não deve existir consolo maior para quem cometeu um crime e está preso. E ainda pode ser chamado de "menino".

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

de pote baixo


Pote significa cabeça assim como cadóca significa presídio. Logo, "de pote baixo" significa "de cabeça baixa" (eu nem sei pra que essas aspas, enfim...)
Essa posição eu vejo direto e não é necessariamente um castigo. É um hábito, uma maneira de esperar. Nesse caso, esses dois meninos estavam chegando na unidade, (repare que o da esquerda está usando tênis) e aguardam entrar oficialmente na rotina, com as roupas e o corte de cabelo padronizados.

sábado, 19 de setembro de 2009

grades deslizantes


Chego na unidade, o guarda me vê e puxa mecanicamente a grade de ferro deslizante. Faz um barulho pesado de aço deslizando em um trilho. Entro na primeira jaula e atrás de mim ouço o mesmo barulho de ferro, da grade se fechando. A próxima grade está fechada. Só vai se abrir quando a de trás estiver completamente fechada. Essa operação é manual, do guarda, sujeito de uniforme e bonézinho azul, que passa passa o tempo todo preso na jaula ao lado, fazendo o abre e fecha. Essa operação leva uns 10 segundos, tempo suficiente para experimentar uma breve claustrofobia. Durante esse tempo eu sempre me lembro daquelas jaulas que os cinegrafistas usam no fundo do mar para filmar tubarões famintos.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Eu e o mestre Caranguejo


Ele é o mestre Caranguejo, tem mais de 60 anos mas parece um menino. Ele tem disposição, bom humor. Ele se identifica bastante com os meninos por que sua juventude não foi nada fácil. Ele é um baiano em São Paulo, desgarrado da terra e da família. Ele passou por poucas e boas e foi salvo pela capoeira. Ele ensina capoeira não como arte e cultura. Ele oferece uma forma de salvação também. Ele diz que sua caneta é o berimbau. Ele me apelidou de históriiam e'quadrim.
Quero seguir o exemplo dele e envelhecer assim, como um mestre capoeirista.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Espera


Quando os meninos chegam da rua esperam nesse banco. Hoje só haviam dois, as vezes tem uns quatro, mas a média é dois mesmo. Estão com a roupa e o corte de cabelo original e usam tenis. Esse banco fica ao lado da minha sala. Antes e depois da aula eu fiquei alí em pé, desenhando rápido os dois. O de cá deu uma olhadinha mas depois voltou a posição-estátua. Provavelmente eles serão futuros alunos, vamos ver. Geralmente eles esperam um bom tempo sentados aí, nesse banco de madeira. Quando digo um bom tempo é praticamente o dia todo. E é assim, em silêncio, tipo de castigo. Quando eu era criança na escola quando ficava de castigo a professora chamava isso de "pensar". Pensar no que eu havia feito de errado. Mas eu só pensava em sair dalí.
Dessa vez eu não mostrei o desenho, geralmente eu mostro. Eles não devem ter entendido nada.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Surdo-Mudo


Um garoto surdo-mudo apareceu na aula. Por incrível que pareça ele conversava muito com os meninos, através de gestos, sempre tumultua a aula. Que tal um retrato, perguntei pra ele com gestos. Ele concordou e durante 10 minutos a sala seguiu em silêncio ou quase.
Depois eu fiquei pensando o que ele aprontou pra estar preso. Ele nunca vai me contar esse fato.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Nerverland

A adolescência é treta, como dizem os meninos . Em quase todas as culturas essa fase da vida é marcada por tortuosos rituais de passagem e provas, muitas provas, que testam e desenvolvem a coragem, inteligência, perspicácia e a paciência necessária para se tornar um homem adulto. Teoricamente é isso.

E não estamos falando apenas de culturas primitivas, dos aborígenes ou dos índios. Hoje, no Brasil, mesmo sem querer-querendo, o estado e a sociedade promovem rigorosas condições para o jovem se tornar adulto. Você deve estar pensando no vestibular, não é mesmo? Sim, ele também é uma dessas provas cruéis da atualidade, mas existem outras. Uma delas é o que eu chamo de CADÓCA ADOLESCENTE, uma prova tão dura quanto um vestibular da FUVEST. Em termos oficiais estamos nos referindo a medida sócio-educativa, aplicada aos adolescentes em conflito com a lei, autores de crimes, que não podem ser julgados e condenados como adultos mas também não podem ficar soltos por aí causando enormes prejuízos. São presos em uma espécie de cadeia, é daí a origem da palavra CADÓCA. Obviamente, não sou eu o autor desse termo, que na verdade é uma gíria.

Normalmente quem passa pela CADÓCA ADOLESCENTE não passa pelo vestibular. Numa sociedade desigual, rituais de passagem desiguais, certo? Certo nada, mas quem sou eu pra julgar? Não quero julgar nada não. Aqui, nesse espaço interativo pretendo compartilhar minha experiência antropológica , minha visão das coisas e das pessoas de lá de dentro. A insólita tentativa de compreender o mundo desses meninos que não passam na universidade, privados de liberdade, desligados da cidade, dando um descanso pra sociedade, cuja história de vida, na verdade, parece uma letra de RAP.

Se eu fosse um rapper, certamente faria um rap sobre esse tema, embora isso seja bem comum. Mas eu não sou rapper, nem MC, só sei desenhar, faço história em quadrinhos, e agora, trabalho com arte e cultura lá dentro, ensinando os meninos a desenhar, a criar histórias, essas coisas que não tem nada a ver com cursos profissionalizantes. Sou parte do osso duro que eles têm que roer, mesmo que desenhar pareça fácil, muito mais fácil que estudar para o vestibular. Eu acho, mas não deve ser. Desenhar é treta mano, é o que eles dizem, ainda mais estando preso, atrás das grades e muros, sob severo esquema de segurança, uniformizados e de cabeça raspada.

É uma situação difícil mesmo, uma prova e tanto. Mas não é na dificuldade que encontramos soluções e novas idéias? Não são os conflitos e as guerras geradores de engenhosas invenções? E por incrível que pareça, a arte, a criatividade e a reflexão acontecem de modo surpreendente lá dentro. Se isso não fosse fato eu não estaria vivenciando essa experiência lá. E não me atreveria a divulgar nada disso aqui.





















A evolução de um desenho as vezes leva meses. Primeiro eu fiz a cena mais ou menos como eu ví, um momento de televisão no refeitório. Depois, muito depois, acrescentei esses dois tótens, dois monolitos de interesse da maioria: mãe e cigarros. E naturalmente o desenho foi ficando sujo, encardido com o próprio grafite. E o meio foi rasgando devido o abre e fecha do caderno. No dia que eu comecei esse desenho ouvi alguém dizer que alí era Neverland, a Terra do Nunca. Poderia ser a tripulação de um navio pirata, mas são só garotos.